quinta-feira, 23 de junho de 2011

A CONQUISTA DE SILVES POR D. SANCHO I EM 1189

TOMADA DE SILVES PELOS CRISTÃOS, DEPOIS DE UM DURO CERCO
SEGUNDO FREI ANTÓNIO BRANDÃO*


Colecção particular

Tanto que os portugueses chegaram à cidade de Silves, mandou o Conde D. Mendo recado aos estrangeiros que se preparassem para dar assalto, porque para o bom sucesso das coisas não havia meio mais acertado que mostrar aos inimigos o animo com que vinham a dar-lhes a exprimentar as grandes forças que entre si tinham. Aprovaram os capitães estrangeiros a resolução do Conde e lançando fora a gente principal da sua armada se juntaram com os nossos e assaltaram a cidade com tanto ímpeto que não obstante todas as diligencias que os mouros fizeram, em sua defesa, e a brava resistência que neles se achou, foram por fim entrados os arrabaldes (que também eram murados) com grande mortandade de infiéis. Nossas histórias carregam a mão neste passo aos estrangeiros e dizem que por culpa sua se não ganhou então aquela cidade, porque se ocuparam com demasiada cobiça em recolher os despojos, roubando as casas de tudo o que encontravam, como fazenda que lhes pertencia pelos pactos que tinham celebrados. Ou fosse esta a causa, ou que os capitães estrangeiros julgassem por bastante o que naquele dia se tinha feito, e não lhes parecesse bem o conselho dos portugueses, cuja cólera os não deixa em semelhantes ocasiões reparar nos perigos, com que se tem arriscado muitas vezes, ainda que as mais delas os tenha a ventura favorecido. Eles desistiram do combate, achando que para bom principio de vitória e para atemorizar os mouros, que era o principal intento, se tinha aquele dia trabalhado quanto convinha.

Nos dias seguintes se ocuparam (depois de enterrar os mortos e curar os feridos) em por em ordem o necessários para a continuação do cerco e antes que dessem o segundo assalto chegou o rei D. Sancho com o restante da gente portuguesa, cuja vinda fez geral o contentamento em todo o campo e os mouros começaram a julgar-se por perdidos, vendo que sobre a multidão de cristãos que os tinham cercado, se lhes juntavam novo exército e um capitão tão insigne e bem afortunado rei D. Sancho, o qual tantas vezes tinha triunfado das forças maomoetanas. El-rei fez chamar logo os capitães estrangeiros, a quem agradeceu muito o esforço que os seus haviam já mostrado no primeiro assalto e mostrou assim, a eles, como aos soldados tanto agasalho e benevolência, que lhe ficaram de novo obrigados a pôr com mais vontade a vida ao seu serviço. Mandou depois o Conde D. Mendo ordenar as máquinas que a milícia daquele tempo costumava, determinando não dilatar muito o segundo assalto, para que nem os contrários tivessem tanto tempo de reparo, nem os seus afrouxassem o animo que mostravam.

Colecção particular


Chegado o dia assinalado, para o combate, começou-se por todas as partes perigosíssimo e nele fizeram, os cristãos, coisas extremadas e os mouros puseram o último de suas forças defendendo o seu partido com tanta pertinência, que o assalto foi dilatando a maior parte do dia com mortes e feridos de ambas as partes, até que El-Rei julgou por acertado tocar a recolher, por não ver mais gente morta, nem arriscar alguns capitães de importância parecendo-lhe como prudente, que a continuação e decurso do tempo lhe meteria a cidade na mão com menor dificuldade.


Admirados, ficaram os estrangeiros, de ver o brio e valor com que os mouros se defendiam, como gente que não exprimentavam tão de ordinário suas forças, como os portugueses e mais espanhóis, pelo que como soldados práticos, vendo o pouco efeito que se fazia nos combates pela fortaleza dos muros e brava resistência dos defensores, ordenaram uma minas secretas, por onde ressalvando os alicerces da muralha pudessem penetrar no interior da cidade e pelejar de perto com os inimigos, até todos se renderem à espada. Mas os mouros que ou pela desistência de armas que os nossos mostravam, ou por alguns indícios, souberam de seus intentos, ordenaram outras contra minas, com que frustraram aos nossos os seus desígnios. Não deixaram porém os cristãos a obra que tinham principiado, antes ordenaram outras minas mais secretas e para encobrir a obra, se davam por ordem de El-Rei ordinários assaltos pelos portugueses.


Acompanharam a El-Rei nesta jornada alem de outras pessoas eclesiásticos, os bispos de Coimbra e do Porto, segundo dizem nossas histórias ambos tinham o mesmo nome de Martinho, como se pode verificar pelas confirmações das escrituras daquele tempo. E por seu conselho e à imitação do que fizera seu pai El-Rei D. Afonso Henriques no cerco da cidade de Lisboa mandou fundar uma igreja em que se celebrassem os ofícios divinos e se sepultassem os que morriam no cerco. E assim no meio dos infiéis e entre os estrondos da guerra exercitavam os cristãos daquele tempo a obras de piedade.

Colecção particular
Havia na cidade um grande poço de água nativa, de onde se proviam os mais moradores dela, tinham uma passagem, que se chamava couraça cercada de fortes muros e baluartes, por onde desciam abrigados a buscar água. Teve El-Rei aviso deste refugio dos inimigos e vendo que lhe seria muito importante assenhorear-se dele impedindo o uso da água, mandou dar fortíssimo assalto, por meio de um português, que começou a minar o muro, dando ordem e traça do que devia fazer, arruinaram grande parte, por onde os nossos começaram a subir; porém acudindo grande multidão de inimigos se lhe fez a entrada tão dificultosa, que estiveram por vezes decididos a desistir dela. Animados, por fim, com a presença de El-Rei e exemplo do Conde D. Mendo seu general e dos mais capitães do exército, que por suas pessoas exercitaram neste tempo as partes de soldados ganharam este posto, tendo custado primeiro muitas vidas.

Ganho este passo, por mais que com ele se facilitou a entrada, não deixaram os nossos de continuar as baterias e assaltos; porem com a grande resistência e indústria dos mouros se foi dilatando o cerco mais do que no principio se imaginava e foi isto por tanto espaço de tempo, que primeiro os soldados estrangeiros e depois os próprios portugueses se foram enfadando com tanta dilatação, que foi necessário a El-Rei pairar a uns e outros com muita prudência. Havia no campo sacerdotes que vieram na frota, estes como varões virtuosos e pios repreenderam os seus da leviandade e inconstância que mostravam a El-Rei (já que não havia lugar de usar outros rigores) foi também sustentado os portugueses com exortações e promessas, de modo que uns e outros se tornaram a reduzir ao estado que convinha. Vencidas estas dificuldades e feita de novo a promessa aos estrangeiros de se não levantar o cerco até certo tempo limitado, depois do qual ficasse livre a uns e outros fazer o que bem lhes estivesse, para se tomar o negócio mais a peito se purgou o exército de gente inábil e enferma e de algumas mulheres que nele havia, que costuma ser o principal impedimento e estorvo.

Colecção particular


Com a grande falta de água que já padeciam e mais misérias que andam anexas a gente cercada, fez com que o Alcaide e os principais se resolvessem a render a partido, salvas as vidas e das fazendas o que fosse razão. E assim saindo da cidade, sobre a palavra, fizeram esta proposta com muita humildade a El-Rei D. Sancho. Era El-Rei de ânimo nobre e condição afável, preservasse tanto de saber amparar a quem se lhe sujeita, como de superar e vencer a quem lhe fazia resistência, acções a todo o príncipe esperadas e louvadas. Não  podia todavia satisfazer plenamente à petição dos mouros, por se ter prometido as fazendas aos estrangeiros nos contratos que haviam feito, contudo segurou-lhe El-Rei as vidas, ainda que com muita contradição dos portugueses, que pretendiam como dizem nossas histórias mete-los todos à espada a troco de muita gente e ccapitães que nos tinham mortos no decurso do cerco. Aceitaram os mouros este partido, vendo que não havia outro remédio e assim desampararam a cidade saíram todos e acharam franca a passagem pelo nosso campo, em que ficaram bem reputados de constantes e valorosos.

Deste modo veio por esta vez à coroa de Portugal a cidade de Silves cabeça do bispado no reino do Algarve e a principal dela; permaneceu então senhorio dos portugueses pouco tempo.

Aos soldados da armada se concedeu o despojo e fazenda que na cidade havia, de que carregaram sua naus contentes com as mercês que El-Rei lhe fizera e sobre tudo com o bom sucesso da guerra. Com os capitães se tiveram da parte de El-rei todos os termos de cortesia e agradecimento, junto com mercês e favores, com que partiram satisfeitos, pregoando em toda a parte as grandezas que nela encontraram.

*In: Monarchia Lusitana - Quarta Parte, pp.12 a 14. Por Doutor Frei António Brandão, Monge de São Bernardo, Cronista-Mor do Reino. Lisboa 1536


Forntíspicio do 4.º volume da "Monarchia Lusitana"
Colecção particular


Nota: Achei por bem alterar o menos possível o texto original, limitando-me, na maior parte das vezes, a utilizar a ortografia moderna, para uma melhor compreensão, tentando manter toda a frescura do texto, principalmente no que diz respeito a alguns termos.

Coorde. e ilustrações: marr

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